terça-feira, maio 03, 2011

Ofício Primeiro


Intertextualidade'S
Diálogos Possíveis

[Poemas que  "conversam" entre si]
[Tela Dali]
Pretendemos  com este artigo  contribuir para o reconhecimento do que se convencionou chamar por dialogismo, com fundamentos nos estudos  de Mikhail Bakhtin (1) através das obras do escritor francês François Rabelais e outros autores. As propriedades do dialogismo tornaram-se,  posteriormente, focos de estudos para pesquisadores como Julia Kristeva, Robert Stam, Diana da Luz e José L. Fiorin, adquirindo também a denominação de intertextualidade e até mesmo de antropofagia, à medida em que um discurso, qualquer que seja este,alimenta-se de outros para construir o seu nexo.
Como tal, o discurso dialógico é reconhecido quando uma relação entre vozes distintas é mostrada e não há uma necessidade de rompimento com seus modelos, influências e predecessores, ou seja, com a sua relação histórica.
A idéia central das relações denominadas convencionalmente por intertextuais surgiu no começo do século XX, como um meio para estudar e reconhecer o intercâmbio existente entre autores e obras, configurando-as como dialogismos. Diálogos também reconhecidos por outros termos, como intertextualidade, enquanto as relações entre vários discursos estudadas no decorrer do século XX se mantiveram como tema e procedimento importantes na interpretação da cultura.          
Mikhail Bakhtin marcou uma renovação nos estudos lingüísticos e literários do Ocidente depois que suas idéias ultrapassaram as fronteiras da Rússia, a partir da década de 70. Intertextualidade ou dialogismo é uma referência ou uma incorporação de um elemento discursivo a outro, podendo-se reconhecê-lo quando um autor constrói a sua obra com referências a textos, imagens ou a sons de outras obras e autores e até por si mesmo, como uma forma de reverência, de complemento e de elaboração do nexo e sentido deste texto/imagem (2)
A leitura intertextual nos mostra como cada texto interage e desconstrói outros textos, reescrevendo-os em outro tempo histórico.
Não existe texto original, já que cada um  carrega em si cargas linguísticas de outro [s]. Do ponto de vista do escritor, o seu texto é citação de outro escritor [o que pode ocorrer inconscientemente] que se fixou em sua memória, mas sempre como uma estética de legente-receptor. Tudo que lemos –aqui nos referimos a leitura como significante de compreendido, apreendido, absorvido e internalizado, se aloja em alguma parte de nosso cérebro- que nem mesmo a ciência ainda sabe identificar, se transforma em cargas de saberes múltiplos, a nossa disposição em toda sua  integralidade, ad aeternum.

Logo, procedente afirmar que cada texto nosso possui antecedente(s), que inevitavelmente tem correlação com outro(s) texto(s).
Cada obra literária sempre nos fala de outras obras existe uma rede ou sistema onde textos, frases, versos, são derivativos de outros textos, outras frases, outros versos: a escrita nunca é virgem, tudo já foi dito um dia, antes.
Vejamos o que acima afirmo , em Guimarães Rosa:
- Rosa, considerado por muitos [leitores e críticos] como um dominador de neologismos [criação de uma palavra ou expressão nova], em verdade não o foi. G.R., muito sabiamente se apropriou da palavra oral circulante nos confins das Gerais, farta na oralidade dos matutos, caipiras e do povo das Alterosas.Logo, nenhuma palavra imaculada na deslumbrante escritura deste Escritor Maior. Em Grandes Sertões- Veredas- destacadamente, presentes seus diálogos com a oralidade mineira- ou um dos mais belos exemplos da intertextualidade de um Autor com suas raízes.[“caboclas”] 
Leitura (sic) de igual modo contida nas obras de Autran Dourado.
O conceito de Intertextualidade tem sua origem na Teoria Literária, ao seu estudo tem se dedicado de forma especial a Linguística Textual, que incorporou ipsis litteris o postulado dialógico descrito acima , de que um texto não existe nem pode ser avaliado ou compreendido isoladamente: ''ele está sempre em diálogo com outros textos''. Assim, todo texto revela uma relação radical de seu interior com seu exterior.
O que equivale dizer, a intertextualidade promove o estabelecimento de diálogos possíveis entre autores, o que pretendemos demonstrar com o auxílio de alguns exemplos.

 I.
Vejamos como conversam entre si os Poemas abaixo:



      O Último Brinde
 Bebo à casa arruinada,
às dores de minha vida,
à solidão lado a lado

                  e a ti também eu bebo -


            aos lábios que me mentiram,

            ao frio mortal nos olhos,

            ao mundo rude e brutal
                                                  e

           a Deus que não nos salvou

                     [ANNA AKHMÁTOVA]*



Lácrimas Vitis
sob os escombros da casa arruinada
postas no frio mármore da mesa nua
         taças de solidão na noite rubra-

                                       são dores minhas
neste cálice de fel
                                                    bebo-me
nos gestos de teus silêncios
entre destiladas mentiras de tuas retinas

                                      e a ti também eu bebo-
                                      em ritual rude e brutal
                                                       lácrimas vitis -                                                         nosso funeral
         [Filipa  Saanan]                                     
 




Apreciados os dois Poemas , percebemos que é possível elaborar um texto novo a partir de um texto já existente. É assim que os textos "conversam" .É comum encontrar ecos ou referências de um texto em outro , com destacada ênfase nos novos Autores[leitores proficientes] A essa relação se dá o nome de intertextualidade. Para entender melhor a palavra, pense em sua estrutura. O sufixo inter, de origem latina, se refere à noção de relação (entre). Logo, intertextualidade é a propriedade de textos se relacionarem.
Chico Buarque de Holanda, um dos mais brilhantes compositores brasileiros, utiliza a intertextualidade em várias composições suas. Em "Bom Conselho", ele conversa com provérbios populares.
II.
Avaliem:
                                                                                             




Provérbios Populares:
“Uma boa noite de sono combate os males”
“Quem espera sempre alcança”
“Faça o que eu digo, não faça o que eu faço"
“Pense, antes de agir”
“Devagar se vai longe”
“Quem semeia vento, colhe tempestade”
       
           







Bom Conselho
Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança
Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar
Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio vento na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade
(Chico Buarque, 1972)

Chico Buarque brinca com a inversão dos provérbios, questionando-os, focando cada um sob outro prisma, atribuindo-lhes novos sentidos, mas a conversa ”entre” é claramente perceptível, e nasce dai um belo diálogo , com o contraditório da fonte origem. O que confere ao texto decorrente - Bom Conselho, extraordinário manejo da palavra, e impecável maestria poética.
A competência em leitura e em produção textual não depende apenas do conhecimento teórico- leia-se de códigos linguísticos. Para ler e escrever com eficiência é imprescindível conhecer outros textos, estar imerso nas relações intertextuais. A essa relação (explícita ou implícita) que se estabelece entre textos dá-se o nome de intertextualidade. Ela influencia decisivamente, o processo de compreensão e de produção de textos. Quem lê deve identificar, reconhecer, entender a remissão a outras obras, textos ou trechos. Nossa compreensão de um texto depende assim de nossas experiências , de nossas vivências, de nosso conhecimento de mundo, de nossas leituras-prioritariamente. Quanto mais sólido nosso escopo de legente [o que equivale a ler e ler incansavelmente para acumular conhecimentos] maior será nossa competência para perceber que os textos sempre dialogam com outros, por meio de referências, alusões ou citações.Um leitor competente identifica facilmente estas relações, este diálogo mágico.
Para ler e escrever com proficiência é imprescindível conhecer vários Autores, imergir nas relações intertextuais, pois um texto é produto de outro texto, que nasce de outro/e em outros textos.

Aqui, apresento outro diálogo poético, estabelecido por mim com Ana Cristina Cesar:
III.




"olho muito tempo o corpo de um poema"

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas

 Ana Cristina Cesar









“ poiesis “
no tempo do poema meu olhar devasso
a desvendar veias e mistérios de seu corpo
quebro suas vértebras
mastigo seus versos entre os dentes
até sangrar as palavras
em leiras de sangue
nos seios


Filipa  Saanan




Tentamos de forma simples demonstrar a Intertextualidade, que também se irmana com os palimpsestos. Por derivação de sentido, entende-se por palimpsesto toda obra derivada de uma obra anterior, por transformação ou por imitação; ou seja, o mesmo que hipertexto.  

Concluindo,deixamos nossa conversa- poética,[ou um palimpsesto ],com Manuel Bandeira:

IV.

O bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.
Manuel Bandeira






Os catadores

entre restos e sobras urbanas
mãos se agitam na imundície dos latões
gritos da fome entre detritos

vorazes como lobos eles se agitam
suas bocas  desnutridas saciam-se
do que é podre, do que é lixo



são homens, ó Pai,não bichos: 
-por que isto?
                                
Filipa  Saanan







Assim dito, eis, pois o que podemos afirmar sobre Intertextualidades, os alquímicos Diálogos Possíveis.

“Para quem sabe  ler, um pingo é Letra”
ou
“Ao bom Leitor, basta um pingo ”

Filipa  Saanan


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(1)_ BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1999.

(2)_ BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz. (Org.). Dialogismo, Polifonia,ntertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1999.

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*Mikhail Bakhtin-Nascido em Orel, de família aristocrática em decadência, cresceu entre Vínius e Odessa, cidades fronteiriças com grande variedade de línguas e culturas. Mais tarde, estudou Filosofia e Letras na Universidade de São Petersburgo, abordando em profundidade a formação em filosofia alemã. Viveu em Leningrado após a vitória da revolução em 1917. Entre os anos 24 e 29 conheceu os principais expoentes do Formalismo russo e publicou Freudismo (1927), O método formal nos estudos literários (1928) e Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), sendo esta última talvez a sua obra mais célebre. Assinada com o nome de seu amigo e discípulo Volochínov, só a partir dos anos 70 teve difusão e reconhecimento importantes, e apenas recentemente é que veio a ser confirmada a sua autoria (Bakhtin concedeu a atribuição de diversos de seus textos a colegas). Em 1929, foi obrigado ao exílio interno no Cazaquistão acusado de envolvimento em atividades ilegais ligadas à Igreja Ortodoxa, o que nunca viria a ser demonstrado. Ficaria no Cazaquistão até 1936. Mais tarde, ver-se-ia forçado ao exílio a Saransk (capital da Mordóvia) durante a purga de 1937. Em 1941 lê a tese de doutoramento no Instituto Gorki, voltando a Saransk como catedrático após a Segunda Guerra Mundial, e sendo redescoberto como teórico por estudantes da capital russa a seguir à morte de Estaline e, sobretudo na década de 60. Os seus trabalhos só foram conhecidos no Ocidente progressivamente a partir da década de 80, atingindo grande prestígio e referencialidade póstuma nos anos 90 e até à atualidade.
Seu trabalho é considerado influente na área de teoria literária, crítica literária, sociolinguística, análise do discurso e semiótica. Bakhtin é na verdade um filósofo da linguagem e sua linguística é considerada uma "trans-linguística" porque ela ultrapassa a visão de língua como sistema. Isso porque, para Bakhtin, não se pode entender a língua isoladamente, mas qualquer análise linguística deve incluir fatores extralinguísticos como contexto de fala, a relação do falante com o ouvinte, o momento histórico.



**Anna Akhmatova

Anna Akhmatova (em russo e ucraniano: А́нна Ахма́това, Odessa, 23 de Junho de 1889 — Leningrado, 5 de Março de 1966) é o pseudónimo de Anna Andreevna Gorenko (russo: А́нна Андре́евна Горе́нко; ucraniano: А́нна Андрі́ївна Горе́нко), uma das mais importantes poetas acmeístas russas.
Começou a escrever poesia aos onze anos de idade, mas o pai, um engenheiro naval, temia que Anna viesse a desonrar o nome da família, convencido de estar a adivinhar hábitos decadentes associados à vida artística. Assim, assinou os seus primeiros trabalhos com o primeiro nome da sua bisavó, Tatar.
Apesar do seu pai ter abandonado a família, quando Anna contava apenas dezesseis anos, conseguiu prosseguir os seus estudos. Portanto, não só estudou no liceu feminino de Tsarskoe Selo e no célebre Instituto Smolnyi de São Petersburgo, como também no Liceu Fundukleevskaia de Kiev e numa faculdade de Direito, em 1907.
A obra de Akhmatova compõem-se tanto de pequenos poemas líricos como de grandes poemas, como o Requiem, um grande poema acerca do terror estalinista. Os temas recorrentes são o passar do tempo, as recordações, o destino da mulher criadora e as dificuldades em viver em escrever à sombra do estalinismo.
Os seus pais separaram-se em 1905. Ela casa-se com o poeta Nikolaï Goumilev em 1910. O filho deles, nascido em 1912, é o historiador Lev Goumilev.
Akhmatova teve uma longa amizade com a poeta Marina Tsvetaeva, sua compatriota. Estas duas amigas trocaram uma correspondência poética.
Nikolaï Goumilev foi executado em 1921 por causa de atividades consideradas anti-soviétes ; Akhmatova foi forçada ao silêncio, não podendo a sua poesia ser publicada de 1925 a 1952 (exceptuando de 1940 a 1946). Excluída da vida pública, vivendo de uma irrisória pensão e forçada a ir fazendo traduções de obras de escritores como Victor Hugo e Rabindranath Tagore, Akhmatova começou, após a morte de Estaline, em 1953, a ser reabilitada, tendo-lhe sido autorizada uma viagem a Itália para receber o prémio literário Taormina e a Oxford para receber um título honorário, em 1965.
Na generalidade, a sua obra é caracterizada pela aparente simplicidade e naturalidade e pela precisão e clareza da sua escrita.




***Ana Cristina Cesar, ou Ana C., como era conhecida, nasceu em 1952 nesta cidade do Rio de Janeiro. Após 1968, passou um ano em Londres, fez algumas viagens pelos arredores e, na volta, deu aulas, traduziu, fez letras, escreveu para revistas e jornais alternativos, e saiu na antologia "26 Poetas Hoje", de Heloísa Buarque. Publicou, pela Funarte, pesquisa sobre literatura e cinema, fez mestrado em comunicação, lançou seus primeiros livros em edições independentes: "Cenas de Abril" e "Correspondência Completa". Dez anos depois voltou à Inglaterra, graduou-se em tradução literária, escreveu muitas cartas e editou "Luvas de Pelica". 
Trabalhou em jornalismo, televisão e escreveu "A Teus Pés", Editora Ática - São Paulo, 1998, de onde extraímos o texto acima.Suicidou-se no dia 29 de outubro de 1983.
Ítalo Moriconi escreveu: "Ana Cristina dizia que uma das facetas do seu desbunde fora abandonar a idéia de ser escritora, livrar-se do que ela naquele momento julgava ser sua face herdada, o estigma princesa bem-comportada, alguém marcada para escrever".



Leituras Recomendadas: 

I.Mikhail Bakhtin: linguagem, cultura e mídia
Pedro & João Editores
430 páginas, tamanho 16 x 23 cm.
Idioma: Português

II. Soixante-Deux Poemes-de Anna Akhmatova
Edição/reimpressão: 2010/Páginas: 160
Editor: DOGANA
Coleção: Livres Audio Cadet
Idioma: Francês

III.Selected Poems-de Anna Akhmatova
Edição/reimpressão: 2009/Páginas: 176
Editor: VINTAGE
Idioma: Inglês